'Twin Peaks': Como um assassinato na TV redefiniu a cultura dos spoilers

Em abril de 1990, a televisão americana vivia sob um paradigma previsível: tramas autoconclusivas, finais amarrados em 50 minutos e mistérios que raramente ultrapassavam as fronteiras de um episódio. Tudo mudou quando David Lynch e Mark Frost lançaram "Twin Peaks" na ABC. A pergunta "Quem matou Laura Palmer?" não somente catapultou a série a condição de fenômeno cultural, como se tornou o primeiro grande caso de spoiler da indústria, antecipando uma obsessão que a internet radicalizaria décadas depois.
Antes de fóruns online e hashtags, "Twin Peaks" transformou a investigação do assassinato da estudante em um quebra-cabeça coletivo. Jornais como Time e Newsweek dedicaram reportagens a teorias sobre o caso; grupos de fãs debatiam pistas em reuniões presenciais (a era pré-internet); e a mídia tratou a revelação do assassino como um evento — não um mero detalhe narrativo.
No Brasil, o frenesi atingiu seu ápice em 11 de abril de 1991, quando a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem de Álvaro Pereira Júnior com o título "Twin Peaks: O Assassino de Laura Palmer". A matéria, mesmo com um alerta, revelava o culpado já no primeiro parágrafo, gerando polêmica entre os espectadores da Globo — que assistiam à série aos domingos, em uma versão mutilada por cortes e episódios suprimidos. (Anos depois, em 1993, a Record exibiria a versão integral, sem censura.)
O cerne do debate, porém, estava além dos spoilers. Em entrevista à Variety, Mark Frost revelou que a ABC pressionou os criadores a desvendar o mistério precocemente na 2ª temporada: "Colocaram uma arma na nossa cabeça. Pelo que me lembro, disseram que parariam de enviar dinheiro se não entregássemos a resposta". Lynch, segundo Frost, resistira: "Nunca devíamos solucionar isso — o mistério deveria continuar para sempre".
E eles tinham razão."Twin Peaks" nunca foi somente sobre Laura Palmer. Era sobre o submundo de uma cidade onde o mal se escondia atrás de cortinas de veludo e xícaras de café — um tema que "Twin Peaks: O Retorno" (2017) exploraria com ainda mais profundidade.
Hoje, em tempos de vazamentos algorítmicos e guerras por quem sabe antes o spoiler, a série de Lynch e Frost é reconhecida como o marco zero de uma cultura que transformou narrativas em caças ao tesouro. Prova disso? "Lost", "Westworld" e até "Game of Thrones" herdaram sua dualidade: a ânsia por respostas versus o prazer do enigma.
Sobre o que é 'Twin Peaks'
Quando a popular e misteriosa estudante Laura Palmer é encontrada assassinada e envolta em plástico nas margens de um rio, a pacata cidade de Twin Peaks, Washington, revela sua face oculta: um emaranhado de segredos, vícios e forças sobrenaturais.
O excêntrico e meticuloso agente do FBI Dale Cooper é enviado para investigar o crime e, por trás da fachada de uma comunidade pitoresca — repleta de xícaras de café, tortas de cereja e diálogos aparentemente banais —, descobre um abismo de violência e mistério.
A série desafia expectativas até seu final perturbador, deixando perguntas que ecoariam por décadas — especialmente quando revisitada em "Twin Peaks: O Retorno" (2017). Ao todo são três temporada e um filme — "Os Últimos Dias de Laura Palmer"; todos disponíveis na MUBI.